sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PARA CELEBRAR

Dizem que os fins justificam os meios. No meu ponto de vista, os fins podem apagar um pouco do brilhantismo do caminho. A minha preferência é por separar o começo, o meio e o fim. Coisas segmentadas servem para facilitar o pensamento e a digestão. Se o problema é difícil, que o dividamos em várias partes para comê-las uma por vez.

Dona Anna impregnou na minha memória histórias incríveis em todas as tardes que voltava da escola e deitava minha cabeça em seu colo. Ela coçava minhas costas. Com unhas pequenas, mas com movimentos graciosos.

Ela chegou bem navegada, fugindo da Europa, como milhares iguais a ela. A guerra arrasou sua consciência e marcou sua existência por inteiro. A vida é mesmo um campo de concentração. Quando você menos espera, o gás entra pela fechadura, você fecha os olhos e dorme para acordar no outro dia e fazer coisas sempre parecidas.

Esta senhora veio ao Brasil com a esperança de viver melhor, pois onde estava as batalhas batiam na porta a qualquer hora. Na realidade, era a morte que sempre atormentava. Explosões estouravam do lado de fora, bem próximas. Eu enxerguei as bombas que ela viu nas histórias que eu ouvi. Eu senti do meu jeito a febre tifóide que ela acometeu, os ratos que comiam restos e que acabavam sendo comidos por gente que também comia baratas.



Lembro até hoje do cheiro de alfazema ou perfume de vó ao entrar em seu quarto. Do seu cantinho religioso, pois assim era ela, funcionária da igreja, fazia hóstia, cantava no coral e ainda tinha paciência para fazer linha dura comigo e com todos os seus.

Foi casada com um Senhor que eu nunca vi e não sei se verei. Sei que um dia de sua vida ele levara um coice no nariz quando era jovem, mas morreu mesmo foi de câncer. Doença dessas antigas e de tormentos atuais. Acredito que tenha sido a vodka. Russos tomam vodka como tomam chá, nunca vi!

Ela chegou ao Brasil muito nova e já com duas filhas. Dona Anna era minha protetora. Servia de escudo para eu fazer pirraça contra meus irmãos. Juro que na base da inocência. Mal sabia eu que isso marcaria a vida dos meus irmãos para sempre. Quando me lembro, porque já me esqueci, me pergunto por que a vida tem dessas. De tirar e por pessoas da existência, brincar com o que achamos certo ou errado e passar tempo cheio de questionamentos sem respostas.

Por essas e outras que Dona Anna me ensinou que a vida é assim. Pintar ovos na páscoa para que ela seja celebrada, misturando mistério em jogo de esconde-esconde no jardim. Ela foi uma senhora bem caricata. Com óculos grandes, dentes da frente bem separados, bochechas caídas, verruga no centro da testa e lenço na cabeça. Era também muito vaidosa, para qualquer foto, tirava seus óculos.

Simpática, morreu de dificuldades provocadas pelo Alzheimer, doença antiga com preocupação corrente e que a deixou sem voz até na alma. Teve seus três dias de luto para poder visitar todos os cantos dos céus e entes queridos, antes de ir embora em paz.

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